Atividade do Arquivo Público promove interação junto às comunidades ciganas do Espírito Santo
Em um acampamento no bairro de Areinha, em Viana, estão atualmente mais de 20 famílias de ciganos Calon. Meninas com vestidos coloridos e rendados e homens com botas, cintos com fivelas de prata e dentes de ouro misturam-se à população local e vivem em um esforço cotidiano para não serem retirados dos terrenos e poderem preservar os seus costumes. Apesar da presença marcante em diferentes municípios do Espírito Santo e do impacto que a cultura provoca, ainda há uma escassez na produção de conhecimento sobre a etnia e os debates relacionados às políticas públicas são muito incipientes.
Um levantamento realizado pelo Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES) localizou poucos documentos nos quais os ciganos são citados. Percebendo essa “invisibilidade”, inclusive em seu próprio acervo, o APEES tem realizado um trabalho de promoção e apoio às discussões sobre o tema, com destaque aos problemas referentes aos acampamentos, empurrados cada vez mais para zonas periféricas, de difícil acesso e pouca estrutura. Dentre as ações empreendidas inserem-se visitas às comunidades. Uma equipe da instituição esteve em Areinha e dentre conversas, comidas e músicas tradicionais pode vivenciar o dia a dia de uma família Calon, recolher informações e registrar centenas de imagens que permitirão a guarda da memória para o futuro, uma vez que são limitados os vestígios oficiais do passado.
De acordo com a filósofa alemã Roswitha Scholz existe um interesse secundário, até mesmo no meio acadêmico, quanto às pesquisas sobre os ciganos, apesar deles serem “parte inseparável da própria cultura moderna ocidental”. Segundo ela a construção da ideia do cigano como “ente avesso ao trabalho” contribui para a sua retirada do espaço de reflexão, pois estamos em um mundo no qual a valorização do serviço e do consumo dificulta o respeito e a compreensão a modos e visões diferenciadas de vida. Roswitha também ressalta como obstáculo as “concepções românticas”, que ao verem a etnia apenas por uma ótica da idealização da magia e dos mistérios proporcionam uma incômoda ausência de estudos aprofundados e políticas direcionadas.
Visita
O grupo do Arquivo Público foi recepcionado no acampamento pelo cigano Eraldo Kalon e a sua esposa Sonia Alves do Rosário. Na barraca da família foi possível observar características próprias da arrumação dos Calon, como as colchas coloridas dobradas ao fundo e as lonas e tapetes no chão. A cama sempre é colocada lateralmente, pois de acordo com a tradição a disposição com os pés para frente atrai a morte. À noite cortinas separam o ambiente dos pais do das crianças.
Uma das marcas das comunidades é uma organização definida pelo gênero, na qual homens e mulheres possuem papéis sociais diferenciados e bem demarcados. Pela manhã os homens efetuam pequenos negócios e escambos, como a venda de relógios e outros artigos. Algumas mulheres saem para ler a sorte. Com o dinheiro arrecadado elas compram alimentos e gêneros de primeira necessidade, pois são elas que sustentam as despesas da casa. Ao finalizarem os trabalhos voltam para a realização das tarefas domésticas. Aproximadamente às 15 horas os homens retornam e se reúnem para bater papo e interagirem entre si.
Durante a visita a beleza das músicas chamou a atenção. São canções antigas, com moda de viola e que remetem ao Brasil dos sertões, principalmente do início do século XX. Elas são obrigatoriamente cantadas por ciganos e são passadas de geração a geração. Os CDs circulam em rede, somente entre eles, de um Estado para outro, configurando uma vasta produção de música sertaneja-cigana. As melodias trazem a lembrança das incursões pelo interior do país. Nelas é comum a utilização da expressão “música apaixonada”, no sentido simbólico de religação com sensações boas do passado. A comida é outro aspecto relevante por trazer traços culturais. No encontro foi servido porco preparado em um tacho, no fogo de chão, do lado de fora da tenda.
No artigo “Identidade, representação social e ciganidade: gênero e etnia entre ciganos Calon no Espírito Santo”, de Mariana Bonomo, Lídio de Souza, André Mota do Livramento, Fabiana Davel Canal e Julia Alves Brasil, é abordada o que chamam de “Linha da Vida”, ou seja, “as etapas pelas quais os ciganos passam e as atividades, costumes, crenças e valores a elas relacionados”. São elas a infância, a fase adulta – que tem como marco o casamento - e a velhice. Eraldo Kalon reforça esse aspecto ao relatar as celebrações que envolvem o matrimônio. “O cigano é um ser festivo. Os dois dias que antecedem o casamento são os mais animados e comemorados com muito churrasco e forró”. Após a oficialização são feitos três dias de preparativos na barraca do novo casal para ocorrer a “entrega” da mulher para o marido. Ritual este que Eraldo relata emocionado, pois diz ser um momento bonito, no qual o pai discursa envolvido pelo som do acordeão. Na cultura cigana a menina é prometida a um rapaz por volta dos nove anos de idade, em acordos realizados pelas famílias. A celebração geralmente acontece quando os noivos estão com 14 ou 15 anos.
Sonia Alves do Rosário destaca que são inúmeras as dificuldades para manter as tradições e as barracas. Os acampamentos são instalados e é feito o contato, se possível, com os donos dos terrenos para a utilização provisória. Em alguns casos pagam-se taxas para o uso. “Muitas vezes precisamos sair de um dia para o outro devido às solicitações dos proprietários. Estive em Brasília junto com o meu esposo na ‘1ª Semana Nacional dos Povos Ciganos’ para discutir ações em prol das nossas comunidades. Temos um bom relacionamento com a vizinhança, mas a questão da falta de locais específicos para as tendas é uma angústia constante. Não é uma vida fácil”.
O acampamento de Areinha está dividido em duas partes. Para o diretor-geral do APEES e cientista social Agostino Lazzaro esta fragmentação é preocupante e estão sendo feitos debates, como os realizados no Espírito Santo durante o “I Encontro de Povos e Comunidades Tradicionais”, para promover uma melhor acomodação nos terrenos, de acordo com os direitos garantidos por lei. “A divisão das barracas é contra a cultura cigana. Muitos grupos são formados por pessoas da mesma família, que ficam distantes, prejudicando a coesão. Os povos ciganos são semelhantes aos indígenas na concepção social e coletiva dos acampamentos. Pensa-se erroneamente que é da natureza cigana o nomadismo, quando na realidade ele ocorre por perseguições, exigências dos donos das terras, dentre outros motivos. Com isso prejudica-se, por exemplo, as crianças nas escolas ou o atendimento médico. Os ciganos não têm como reivindicação a posse dos territórios para a construção de casas, o que almejam são espaços com a infraestrutura adequada, oficializados e tutelados pelo poder público, nos quais possam se estabelecer, armar suas tendas e preservar a sua cultura milenar”.
Ciganos no Brasil
Estima-se que há mais de 700 mil ciganos atualmente no Brasil das etnias Calon, Sinti e Rom. Os Calon possuem origem ibérica e estão no país desde o início da colonização portuguesa. Os Sinti e Rom são provenientes da Itália, Alemanha, Ucrânia, Polônia, dentre outros locais, e chegaram ao Brasil no século XIX, no período da grande imigração.