Dia da Consciência Negra: a trajetória de uma representante da história afro-capixaba
Fotografia: Tati Beling
São muitas as lembranças que circundam a memória de Laura Felizardo. Nascida no Morro do Feijão, em João Neiva, em maio de 1928, Dona Laura é reconhecida como matriarca da cultura bantu no Espírito Santo e, aos 89 anos, é um dos mais importantes nomes da representatividade e história afro-capixaba. No Dia da Consciência Negra, celebrado nesta terça-feira (20), data que marca a resistência à escravidão, simbolizada pela morte de Zumbi, líder do Quilombo de Palmares, o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES) presta uma homenagem à Dona Laura, trazendo à cena algumas das vivências que marcam a sua trajetória.
Moradora do Centro de Vitória, ela recorda os tempos que passou na “roça”, em um remanescente de quilombo, no qual ajudava na lavoura em meio a plantios de café, mandioca, milho, feijão e banana. Na infância, Dona Laura costumava brincar com bonecas feitas à mão pela mãe, Alzira, que era costureira e bordadeira. Das refeições, rememora o sabor da comida caseira composta por carnes de boi, porco e galinha, muita verdura e os bolos e doces que a mãe produzia. Narciso Felizardo, seu pai, foi para Dona Laura e para a comunidade ao redor uma figura de extrema força. Era profundo conhecedor de ervas e plantas e atuava como respeitado curandeiro “Quibanda”. Ele era reconhecido como “Senhor da Natureza” e tornou-se a referência religiosa do lugar. “Ele indicava banhos, fazia remédios e oferecia rezas. Além disso, tinha premonições e adivinhava o tempo. Muitas pessoas vinham procurá-lo”, conta a filha.
O seu avô foi um dos precursores do congo no Estado, e era mestre capitão, fazendo com que a sua casa estivesse constantemente repleta de sons e de danças. O folclorista Guilherme dos Santos Neves, no livro “Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba”, relata como eram as comemorações nessa região ao descrever a Festa do Mastro em São Benedito, ocorrida no distrito de Acióli, em João Neiva, no dia 6 de janeiro de 1962. O relato, inclusive, cita a participação do avô de Dona Laura, Felizardo Claudino. “Desde cedo o povo afluía ao centro da cidade, onde, em elevação a que se chega por longa escadaria, se ergue a igreja, ampla e nova. A afluência cresceu quando, do Morro do Feijão – lugarejo vizinho – desceu o Congo da Alegria, sob a direção do mestre ou “capitão” Felizardo Claudino, com suas vinte figuras. Entrando na cidade, pipocaram foguetes, enquanto, ufana, a banda de congos entoava a sua marcha de chegada: O congo da alegria chegô. Oi já chegô, já chegô...”.
Aos 10 anos, após a separação dos pais, Dona Laura foi trabalhar como babá e cozinheira para uma família em Colatina. “Eu fazia comida, cuidava de cinco crianças e arrumava a casa”, comenta. Segundo afirma, existia uma relação de muita afetividade com os meninos e meninas, que costumavam passar mais tempo com ela do que com a mãe. Aos 15, mudou-se para Vitória e por muitos anos atuou como babá e doméstica em diferentes locais.
O bailarino Paulo Fernandes, filho de Dona Laura, destaca a forte identidade da etnia bantu, que é proveniente da região Austral da África, em especial do Congo-Angola. Os seus membros, ao virem para o Brasil, se instalaram, em sua maioria, no Sudeste, em especial no Espírito Santo. Suas contribuições podem ser observadas, por exemplo, na língua, em palavras como camundongo, dengo, cafuné, moleque, farofa e cochicho e também nos aspectos culturais, como o Jongo, Ticumbi e a Folia de Reis. “Os bantus estão presentes nas tradições, costumes e religiosidade do povo brasileiro em diferentes aspectos. Conhecer a história dos bantus, exemplificada pela trajetória da minha mãe, é fazer da memória um processo de preservação”, comenta Fernandes.
Negros no Espírito Santo: acervo histórico
No acervo do APEES há diversos documentos que possibilitam pesquisas sobre a relevância e atuação dos negros na sociedade, política, economia e cultura capixaba, promovendo o diálogo entre o passado de lutas e as conquistas de direitos. Estão sob a guarda da instituição, por exemplo, registros de batizados, casamentos e óbitos, correspondências recebidas pelos Presidentes de Províncias, que trazem dados como os mapas populacionais, informações de fugas de escravos, interrogatórios e citações oficiais quanto à vigilância às pretensões abolicionistas.
Podem-se citar também os passaportes, dos anos de 1843 a 1844, emitidos pela chefia de polícia, que mostravam a saída de escravos negros para outras localidades, principalmente o Rio de Janeiro. Neles são apresentadas as datas de partida e uma descrição detalhada das características físicas do portador do documento. Outro destaque é o Fundo “Juízo de Direito da Comarca de Vitória”, formado por 56 livros e 13 caixas, nos quais é possível analisar a concessão jurídica da alforria e os processos que levavam à emissão das “cartas de liberdade”.
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