Documentos do Arquivo Público mostram conflitos entre ciganos e as forças policiais no século XIX
No dia 17 de novembro de 1898 a comarca de Piúma agitou-se devido a um confronto policial que resultou em mortes, dentre elas a do líder cigano Deolindo Cardoso. Para investigar os fatos foi instaurado um inquérito no qual oito detidos responderam a uma série de perguntas feitas pelo delegado de Iconha. O processo– ainda não utilizado em pesquisas - faz parte do acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES) e fornece dados sobre as situações que envolveram o embate, mostrando a presença no Estado de comunidades ciganas no século XIX e as perseguições sofridas pela etnia.
A cigana Maria do Carmo, 70 anos, prestou esclarecimentos e contou que o grupo de Deolindo era constituído por 14 pessoas e estavam no Espírito Santo há dez dias fugindo de um conflito no Rio de Janeiro. Ao lhe perguntarem por que ficavam nas matas e não nos povoados ela respondeu que temiam, a todo o momento, a chegada das forças públicas. A cigana Amasilia Hasia de Almeida, 20 anos, destacou que Deolindo – seu irmão – orientou que ela e as demais mulheres se mantivessem na floresta enquanto os homens vigiavam a estrada. No confronto, conforme informa, falecerem Deolindo, um cunhado dela e um cigano chamado Gonçalves.
No decorrer do processo mais seis ciganos foram interrogados: Francisco Caetano, 19 anos; Jovelina Maria da Conceição, 19 anos; Philomena Conceição, 18 anos; Jeronymo de Souza Cambrainha, 26 anos; Nitalina, 13 anos e Heosina, nove anos. Esta última era sobrinha de Deolindo e declarou que presenciou no Rio de Janeiro a morte dos pais a tiros. Questionada sobre um machucado em sua pele explicou que foi em decorrência de uma bala que atravessou o seu braço de um lado ao outro.
Os inquéritos policiais do século XIX - apesar de serem documentos oficiais e, com isso, trazerem as visões e perspectivas do poder público, muitas vezes sem contraposição a outras versões dos fatos - compõem uma rica fonte para a História. Por meio deles pode-se buscar ler nas entrelinhas e perceber o que se mostra além do escrito. No caso dos ciganos não se pode afirmar se cometeram ou não os crimes que lhes foram atribuídos, pois não há informações suficientes. Porém são perceptíveis as perseguições que sofriam, uma vez que o processo mostra duas situações de conflitos nas quais ciganos foram mortos e feridos, inclusive crianças. Observa-se ainda a constante utilização de termos pejorativos para se referir ao grupo.
Foto: Mayangdi Suarez
A filósofa alemã Roswitha Scholz, no artigo “Homo Sacer e ‘Os ciganos’,” ressalta o interesse secundário, até mesmo no meio acadêmico, quanto às pesquisas sobre os ciganos, apesar deles serem, em suas palavras, “parte inseparável da própria cultura moderna ocidental”. Nesse sentido ela destaca dois pontos de vista existentes para uma mesma reflexão: o silêncio sobre o tema e as concepções romantizadas. A sua ideia central é que essas duas perspectivas – a exclusão e a idealização – são duas faces da mesma medalha, o que provoca uma incômoda ausência de estudos aprofundados e políticas públicas voltadas às necessidades da etnia.
O diretor-geral do APEES, Agostino Lazzaro, comenta que ainda são poucos os estudos sobre os ciganos no Espírito Santo. “Com exceção de algumas pesquisas sobre os Calons existe uma lacuna referente ao assunto. Não há dados, por exemplo, sobre os ciganos que chegaram ao Estado no fluxo imigratório do século XIX, pois nos passaportes não se distinguiam as etnias. Assim, muitos capixabas podem ter antepassados ciganos sem saberem, principalmente os descendentes dos Sinti e Roms que abrangem, por exemplo, indivíduos de nacionalidade alemã, italiana, suíça, polonesa e ucraniana. O Arquivo Público está à disposição para que os consulentes adentrem nessa seara de trabalho ainda inédita”.
Ciganos no Brasil
De acordo com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Social o primeiro registro oficial da presença de ciganos no Brasil data de 1574. Atualmente estima-se que há 500 mil ciganos das etnias Calon, Rom e Sinti no país e também milhares de descendentes já sedentarizados e totalmente integrados à sociedade brasileira.