Tradutor do livro ‘Nossa Vida no Brasil’ comenta a imigração confederada em Linhares
“Uma vila brasileira, única e pitoresca. Excedia em simplicidade qualquer coisa semelhante a uma cidade que nós jamais tínhamos visto”, escreveu em seu diário Julia Louisa Keys para relatar o seu primeiro dia em Linhares, no ano de 1867, após uma longa viagem iniciada no Alabama, nos Estados Unidos. Os encantos e anseios iniciais misturaram-se, posteriormente, à agitação provocada pelas dificuldades de adaptação, que culminaram em seu retorno ao país de origem.
O livro ‘Nossa Vida no Brasil’, lançado este ano pela Coleção Canaã do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES), traz as impressões de Julia Keys e permite adentrar em suas memórias sobre o período no qual almejou viver no Brasil em condições semelhantes à que tinha nos Estados Unidos. Perspectiva esta que se mostrou frustrada quando se deparou com a falta de conforto, as dificuldades em explorar e adentrar as florestas, o clima e o embate cultural quanto aos modos de ser e viver dos nativos.
O historiador da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e tradutor da obra, Célio Antônio Alcântara Silva, destaca a especificidade dessa imigração que, apesar de parecer pequena se comparada à entrada em massa de imigrantes europeus, teve motivações essencialmente políticas. O tema foi pesquisado por Célio em sua tese de doutorado, na qual questionou quem eram esses imigrantes, seus vínculos e origens. Para isso foram feitos estudos nos Estados do Alabama, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Geórgia, Mississipi, Louisiana e Texas nos Estados Unidos e em São Paulo, Paraná, Pará e Espírito Santo, no Brasil. O historiador esteve no APEES no ano de 2010, no qual buscou informações em diversas fontes, dentre elas o ‘Fundo Governadoria’, documentos ligados à polícia, notícias de jornais, cartas do presidente da Província e relatórios.
O mediador da imigração confederada em Linhares foi o advogado, financista e fazendeiro Charles Grandison Gunder, que comprou grandes plantéis de escravos e se estabeleceu em uma área ampla, o que reforça a intenção de trazer os seus conterrâneos. Em 20 de setembro de 1867 foi assinado um contrato para nomear Gunter como intermediário entre o governo imperial e os demais imigrantes, tornando-o inspetor geral de Terras. A ele cabia a decisão sobre quem faria parte da colônia, bem como a divisão da área a ser vendida. Em sua maioria os imigrantes confederados do Rio Doce eram proprietários de escravos nos Estados Unidos.
Julia Keys foi um desses imigrantes. Ela permaneceu em Linhares de junho de 1867 a maio de 1868, após manteve-se no Rio de Janeiro até voltar ao seu país em 1870. Em seus escritos Julia relata a beleza da região, a fascinação pela fauna e flora, o choque provocado pelo contato com os índios e aspectos sobre as relações sociais no Brasil, em especial o espanto que lhe causou a desigualdade de gênero, pois às mulheres não era permitido andar desacompanhadas. Julia descreve ainda os diversos problemas enfrentados, principalmente após a mudança para as margens da Lagoa Juparanã, quando se instalou em uma casa improvisada, com muitos insetos. A versão original da publicação, de 1874, encontra-se no Arquivo Histórico do Estado do Alabama, em Montgomery.
De acordo com Célio Silva os confederados buscavam reproduzir o velho sul escravista no Brasil e a decisão de imigrar era um reflexo dessas aspirações e tinha um caráter conservador. “Insatisfeitos com a derrota dos Estados Confederados da América, a abolição da escravidão e a supressão dos direitos políticos daqueles que pegaram em armas contra a União, os sulistas almejaram o autoexílio” explica. O Brasil, ainda escravista, era visto como um paraíso para aqueles insatisfeitos com a organização social após a derrota na Guerra Civil. Com isso, a origem do grupo, composto por oito a dez mil pessoas, estava ligada à resistência às mudanças. “Trata-se de um fenômeno que merece ser observado por seu caráter peculiar, pois os imigrantes passaram por dois processos de abolição, um em seu país e outro nas terras brasileiras”.
Essa e outras obras da Coleção Canaã do APEES estão disponíveis para download gratuito no link:http://www.ape.es.gov.br/publicacoes.htm.